domingo, 14 de novembro de 2010

Melhor Relato de Prática de Memórias do Polo Regional Norte - Olimpíadas 2010

AQUECENDO A ÁGUA: UMA LUTA CONTRA O DESCRÉDITO

Por: Elisângela Oliveira Silva de Araújo

Era vinte e um de maio... Entrei na sala mais que carregada, parecia um daqueles animais de carga que antigamente transitavam nas poucas ruas enlameadas de minha cidade, levando para o Mercado Municipal a produção rural de seus proprietários. Os alunos estavam ansiosos para saber o que significavam a presença da TV em sala, aquele calendário afixado na parede, aqueles livros num cestinho e aquelas fotografias que foram dispostas no quadro-de-giz.
_ “Vamos assistir a um filme, professora?”
_ “A aula de leitura vai ser hoje?”
_“De onde são estas fotos?”
E em meio a ansiedade e aos arroubos interrogativos, desfiz o mistério: “vai começar a corrida contra o tempo ( afinal já era 21 de maio!) e a busca por um lugar no pódio"". Quem vai querer participar da maratona de produção de Memórias?” Quando lhes falei das etapas da competição e que a mesma se daria em escala nacional, mesmo diante de minha empolgação, veio um balde de água fria de um veterano “do fundão”:
_ Professora, ninguém dessa escola tem a menor chance de ganhar!
_ É mesmo! – reforçaram outros.
Pensei comigo: “Não vai ser nada fácil.” Mas como não me dou por vencida facilmente, começou a “Olimpíada do Incentivo”. Falei a eles de nossas possibilidades, de como seria o trabalho e da importância da realização do mesmo não só pelo prêmio, mas, principalmente, pela possibilidade que todos teriam de aprender mais, de melhorar a leitura e a escrita, de conhecer melhor o lugar onde vivem, de realizar descobertas que nunca imaginaram, de criar laços de identidade com seu espaço de vivência, de conhecer a experiência das pessoas idosas...
Quando percebi que alguns começaram a simpatizar com a ideia, dei o pontapé inicial ao trabalho, perguntando que lugares e cenas eram as retratadas nas fotografias que estavam expostas no quadro. As respostas foram intrigantes, pois revelavam um desconhecimento quase generalizado de como era a cidade há quarenta e tantos anos. Aproveitei para dizer-lhes do quanto ainda poderíamos descobrir durante a realização da Olimpíada. Todos começaram a se empolgar. Alguns ficaram sensibilizados em saber que nossa cidade, Cruzeiro do Sul - Acre, ainda tão nova (apenas 106 anos), já tinha no histórico a morte de um pequeno rio – o Boulevard –, que se transformou num esgoto bastante conhecido de toda a população.
Outro grande incentivo foi dado com a exibição do vídeo (enviado em 2009 aos professores participantes das oficinas de treinamento em cada município), que traz a entrevista do artista João Acaiabe a alunos semifinalistas da OLP em 2008 e a retextualização da mesma, feita por duas alunas naquela ocasião. Foi um momento muito positivo, pois eles começaram a achar que o trabalho não seria tão complicado assim (mas como se enganaram!).
A partir desse momento, com os alunos devidamente incentivados, dei início às oficinas propriamente ditas. Nas aulas seguintes, ouvimos, lemos e comentamos alguns dos textos sugeridos na Coletânea. Foram momentos bem alegres e surpreendentes. Não me esqueço de quando os alunos ouviram os sons característicos de bateria de escola de samba, reproduzidos no texto “Transplante de menina”, de Tatiana Belinky. Foi uma festa só: imitavam nas carteiras o barulho dos tambores, sambavam e riam animados. Aproveitei o momento para falar a eles que um texto de Memórias deve ser assim: ter o poder de nos transportar para o lugar descrito e para a situação narrada, surpreender com os detalhes e as impressões, nos fazer “sentir”cheiros, “ver”cores e “ouvir”sons...
Diante das narrativas de memórias, no entanto, o que mais me surpreendeu foi a atenção com que os alunos ouviam os textos. No fim de cada narração, todos queriam ouvir novamente, participavam ativamente das discussões, dando opinião, respondendo aos questionamentos, retomando partes do texto para exemplificação, e muito mais.
Assim, chegamos ao conceito do gênero Memórias e a diferenciação entre ele e os gêneros Diário e Relato histórico, cujas características muito se assemelham. Em seguida, apresentei a eles os poemas “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade e “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu . Solicitei que eles comentassem tais poemas, falando de seus conteúdos e do que perceberam de familiar nos mesmos. Queria que eles percebessem que aqueles poemas registravam as memórias de seus respectivos eu líricos. Por isso, achei interessante quando um deles disse: “_ Estes textos são memórias disfarçadas de poema.” Entendi ali que eles começavam a se familiarizar com o gênero, percebendo-o até mesmo em uma estrutura diferente da comum.
Até este momento o trabalho fluía bem, mas chegou o momento das entrevistas iniciais e da coleta de objetos antigos, que retratassem momentos passados de nossa história. A dificuldade foi grande, primeiramente porque os alunos pareciam indispostos a sair em busca de pessoas para contar suas memórias. O trabalho deveria ser feito em grupo, mas alguns deixaram de ajudar aos colegas, gerando desentendimentos e trabalhos individuais, o que significa dizer que alguns não contribuíram com este momento tão importante da atividade.
Outra dificuldade enfrentada foi o fato de as pessoas de mais idade do bairro não quererem contar suas memórias (punham como barreira o analfabetismo, o “não saber falar”). Os que se dispuseram a assumir o lugar de entrevistado não se aprofundaram muito nos relatos, ficaram restritos ao fazer diário na roça, nos seringais, na descrição seca da cidade e de seu crescimento. A coleta de objetos antigos e imagens também não rendeu o que esperávamos: algumas poucas fotografias de pessoas, apenas; objetos como talão de conta de energia, ralador de coco e poronga (ou lamparina).
Durante a exposição dos dados e objetos coletados e diante da primeira produção individual, pude perceber que as pessoas que foram entrevistadas não demonstravam apreço por este lugar e muito menos guardavam dele lembranças realmente significativas. Parece que a dureza da vida nesse recanto do país é uma cortina que lhes impede de ver o que há de positivo no lugar, as lembranças são amargas, a memória foca apenas as dores, os pesadelos da vida.
Diante disso, tive que repensar o trajeto rumo ao texto final e à construção de uma identidade do aluno com o lugar onde vive. Procurei saber deles a visão que tinham da vida em Cruzeiro do Sul, e confesso que não era muito diferente da de seus pais e avós. Senti que era hora de mudar essa realidade. Como os pais e avós dos alunos não queriam vir até à escola, fui até eles. Sondei suas memórias por meio de perguntas bem específicas e assim consegui alguns relatos interessantes, resgate de brincadeiras e formas de viver do passado, descrições detalhadas do espaço e, surpreendentemente, saudades de um tempo que se faz superado em muitos aspectos.
Voltei para a sala de aula bem motivada e cheia de experiências para contar, que estrategicamente deixei para mais adiante. Enquanto isso, o trabalho com o gênero seguia a todo vapor: analisávamos a estrutura, as marcas linguísticas e a linguagem figurada; reescrevíamos trechos de textos; investigávamos o modo como cada autor comparou o passado e o presente; retextualizávamos entrevistas, mudando o foco narrativo e produzindo memórias...
Ao longo desse processo, os alunos também foram convidados a criar suas memórias pessoais e a descrever as mudanças pelas quais passou a cidade nos últimos quarenta anos, através da análise das fotografias que consegui coletar, das entrevistas que fizeram e do modo como veem nosso município na atualidade.
Por fim, chegou a hora da produção final. Em grupo, decidimos que ela seria feita não a partir de uma entrevista, apenas, mas da junção de todas elas: uma memória coletiva. Foi nesse momento que entraram as entrevistas que fiz com diversas pessoas. Repassei todas as informações que coletei, mostrei os vídeos gravados, para fazê-los sentir a emoção dos entrevistados, e acrescentei minha visão sobre nosso lugar, uma vez que, apesar de não ser tão velha assim, sou uma das pessoas que mora no bairro há mais tempo e vi todas as mudanças significativas pelas quais ele passou: a destruição da vegetação nativa para a criação de gado e construção de casas, como as do mutirão onde fica a escola e a maioria dos alunos moram; a degradação do único igarapé do bairro, o Tiro ao Alvo, destino certo da população nos dias de domingo; o fim da Associação de Moradores, local de festas e reuniões; o asfaltamento das ruas; a construção do posto de saúde; a reforma do estádio, dentre outras. Muitos alunos pareciam emocionados e surpresos diante do que descobriam, as perguntas afloravam com naturalidade, os comentários davam a certeza de uma nova e positiva visão de espaço, pois todos agora entendiam que muita coisa não deveria ter mudado e que é importante conhecer e sentir-se parte do lugar onde se vive.
Foi esse clima de pertencimento e essa efervescência de informações e impressões que deram lugar aos textos de cada um – textos bons, razoáveis e ruins. Era a hora da revisão e da reescrita. Assim, após a leitura de cada texto, os próprios alunos foram convidados a opinar sobre o que melhorar nos textos dos colegas. Em seguida, atendi individualmente a cada aluno, orientando e fazendo intervenções, de modo que cada texto ganhasse em qualidade, atendendo com eficácia a situação de produção.
Relembrando todo o caminho percorrido, ficou a sensação de dever cumprido, pois além de permitirmos o aprimoramento da leitura e da escrita dos alunos, buscamos ainda fazer com que se sentissem parte integrante do lugar onde vivem, orgulhando-se de nossa história e valorizando as experiências de vida dos mais velhos. E, contrariando o pessimismo do veterano “do fundão”, descobrimos juntos que todos têm chance, basta querer: o anúncio da classificação do texto de Eduarda Moura Pinheiro para a semifinal foi a prova disso. Era o fim do pessimismo, a água do balde estava aquecida!

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